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NAS VEREDAS DO TEMPO: A VIDA DE JOSÉ GABRIEL AGUIAR JUNQUEIRA



É um dos mais jovens descendentes do patriarca, um sujeito alto, rude, de barbas ruivas, mãos calosas e grossas, com um sorriso ingênuo que às vezes se transforma numa gostosa gargalhada quando brinca com seus cachorros ou lembra a cara espantada de um veado que vem caçando e que jamais permitiu que fosse ferido. Ali no curral, todo sujo de esterco, cheirando a vacas, a indefectível bengala à mão: Gabriel é um Junqueira...


Jornal O Estado de São Paulo - 29 de junho de 1982




Por Ana Meirelles



A memória de José Gabriel Aguiar Junqueira está para o tempo, assim como as raízes estão para as árvores: a base de sustentação para que a vida possa nascer e para que a vida possa continuar, fixada em um importante alicerce, capaz de deixar florescer o que ficou cravado, plantado, no coração daqueles que foram tocados pela existência tão nobre de um homem além do seu tempo. Um homem com um coração gigante. 



Raiz 


José Gabriel nasceu em 22/11/1955 em Cruzília, Minas Gerais. Filho de Rubens Junqueira de Andrade e Nízia Aguiar Andrade. Seu nome foi uma junção dos nomes de seus avós e, nas palavras do Sr. Rubens: “em homenagem a São José do Favacho, ficando sob a sua proteção.” Cresceu na Fazenda de seus pais, a Fazenda Favacho - berço da família Junqueira e uma das pilares da Raça Mangalarga Marchador. A família é um retrato tradicional da elite rural brasileira, que mantém uma cultura mais conservadora e de muita honra e dá continuidade aos costumes de seus antepassados. Na Favacho, as atividades principais foram a criação de cavalos Mangalarga Marchador, de cães Foxhound, da agricultura e pecuária leiteira, recria e de corte.


“Bié”, como era chamado, cresceu cercado por esses privilégios sociais. Nascido e criado em “berço de ouro”, sua infância foi marcada pelo contato com o avô materno, José Ananias Ferreira de Aguiar, na fazenda Campo Alegre, em Santo Antônio do Amparo, e o imensurável amor pelo Favacho. Um amor que perdurou por toda a sua vida. Não existe falar do Bié sem falar do Favacho. O cenário principal de tantas lendas, histórias e orgulho, foi também o mesmo lugar que preparou o jovem para o mundo. Nem mesmo os privilégios definiram o seu jeito incrivelmente simples.




Juventude


Mesmo com o coração enraizado no Favacho, Bié não tinha medo de ver o mundo. Com o espírito de um jovem sonhador e visionário, ele concluiu seus estudos em Zootecnia na Universidade de São Paulo (USP), em Pirassununga - SP, em 1975, e embarcou em uma aventura pelo interior do Brasil profundo. O então jovem aprendiz de fazendeiro, deixou toda a segurança e conforto da sua vida em Minas para se lançar ao desconhecido e ajudar a abrir, literalmente, as fronteiras agrícolas do Brasil Amazônico. O destino: Altamira, no Estado do Pará. A missão: ajudar o seu tio Edmundo Aguiar a cuidar e formar suas terras naquele Estado longínquo e desafiador. 


O tempo de trabalho árduo longe de casa foi um dos precedentes que levaram Bié a voltar para Minas e assumir de frente os negócios da família. Sob a sua administração, ficaram as Fazendas Favacho e Campo Alegre. Ali, ele começava a firmar o seu propósito de trabalho incansável para manter de pé o patrimônio da família em uma época em que a Favacho já estava deficitária. Na época, uma centena de funcionários viviam ali, alguns deles, descendentes dos escravizados que jamais quiseram ir embora


Em entrevista ao Jornal O Estado de São Paulo em 1982, Bié relata as dificuldades enfrentadas: “Tudo o que ganhamos é a conta de pagar os empregados e a manutenção da fazenda. Já pensamos até em vender a sede, mas aí eu penso: se quiserem me arrancar um pedaço, é só me tirar daqui.”


O cenário macroeconômico nacional na época era complexo. Mesmo com os índices que demonstram um crescimento agrícola importante observado na década de 1980, a modernização da agricultura limitou técnica e economicamente, propriedades familiares em que os processos de produção eram mais rudimentares. 


Denise 


A história do Bié tem um novo desfecho quando ele encontra Denise, uma jovem professora da cidade de Carrancas. Nascia ali um amor em sua forma mais pura e simples. O amor de “Biel” por ela foi como ele mesmo era, intenso. Sem muitas esperas. Sem muitas voltas. Um amor fati que aceita com fé o destino. O pedido de namoro veio em um final de expediente na escola em que Denise lecionava. Muito simples, muito romântico. 






Sob a bênção de São José do Favacho 


Em 16/07/1982, na Capela centenária de São José, na Fazenda Favacho, ocorre o casamento de José Gabriel e Denise sob a benção do santo padroeiro e de cerca de mil convidados. A quantidade de pessoas presentes assinala abertamente a popularidade de Gabriel, que  convidava todo mundo que encontrava pela frente. Sua consideração e a não distinção entre as pessoas levou uma legião de amigos à celebração inesquecível pelos presentes, a um capítulo crucial na vida dos noivos.


As comemorações, de certa maneira, também significavam uma despedida, corroborando uma das leis herméticas de polaridade: feliz pelo casamento, vencido pela venda da Favacho. A oficialização da venda da Fazenda aconteceu no mesmo dia do casamento. Gabriel e seu pai foram votos vencidos na família na decisão de vender a sede. 


Ganhar um casamento, perder uma sede. “Se quiserem me arrancar um pedaço, é só me tirar daqui”. Mas aqui se perde, aqui se ganha. Nas leis divinas, “quando Deus fecha uma porta, ele abre uma janela”. Foi assim que, como em um roteiro de filme, recém - casado, Bié troca a sede da Fazenda pela casa de colono, temporariamente, para gerenciar a transição Da Favacho para os novos proprietários. Conhecedor das terras, do manejo e das pessoas que ali trabalhavam, no período de um ano, ele gerenciou toda aquela estrutura que ele tanto amava até a mudança para a Serra do Favacho, em 1983. Foi quando as janelas se abriram para a vida renascer.





O lugar sagrado: a Serra


Um lugar sagrado, um chamado de mãe. Os canarinhos, a linha do trem. A Serra e seus pastos férteis e nutritivos, antiga casa de grandes nomes do Mangalarga Marchador, selecionados na mais pura essência funcional... A Serra foi casa para a célebre Foxhound Carta. “Talvez a melhor cadela do mundo” - registrou Bié em seus manuscritos. A fotografia do seu primogênito, Jayme, com a Carta e sua ninhada, a vida acontecendo, completamente nova. Bié tinha pressa. Era tudo pra ontem e a vida sempre em estado de presença. Da Serra pro Campo Alegre, da Serra para a Linda Flor, de Minduri para Cruzília... Os amigos sempre pelo meio do caminho. E foram muitos os caminhos, e mais ainda os amigos. 


Em 1986, nasce o segundo filho do casal, José Ananias. Níbia vem em 1989 para fechar o trio ruivo. O nome exótico herdado de origem da bisavó materna lhe rendeu um sobrenome exclusivo de Gabriel. Quando veio o registro, a Denise perguntou onde estava o Teixeira ou Guimarães e a resposta veio rápida: “Já pegou o boi de colocar o nome, ainda vai querer sobrenome?” E assim, a Níbia ficou mesmo só com o sobrenome do pai. E assim que, algum tempo depois, através da Níbia, nasce um novo Gabriel mas Bié não chega a conhecer o neto. 






A rotina


A Serra era uma aventura, um novo começo e uma nova história na vida do jovem casal. Gabriel mantinha a rotina das fazendas com ideias inovadoras para o campo na época, tendo sido pioneiro em plantações de monocultura na região, como arroz e soja.


A Serra também foi a casa de Favacho Teorema, seu cavalo de caçadas - lenda nas histórias do Mangalarga Marchador. A Serra foi referência, lugar de seleção da tropa Favacho - do que ele plantou mas outros colheram - do gado leiteiro que rendeu muitas conquistas à fazenda nos torneios, e dos cachorros Foxhounds que, seguindo o instinto e o faro dos seus antepassados, foi norte e essência na vida do Bié. A Serra é abrigo




Nas veredas da vida 


De um lado para o outro, comprando e vendendo gado, com o telefone nas mãos, andando pela casa, negociando, conversando, um assovio, um cafezinho e uma pitada, sem poder esperar. “Parece que ele sabia, sabe? que não teria muito tempo.” Lembra Denise. Aquilo tudo tinha que ter sido tão rápido? Ninguém estava preparado e até hoje ninguém está preparado o bastante para falar sobre ele. 


Bié possuía uma luz própria. Um farol para os que estavam por perto, uma espécie de estrela guia. Onde ele chegava, o ambiente era contagiado pela sua presença. Fosse um segundo a menos em uma estrada, fosse ainda um Farol - mas trabalhando - um acidente lhe tirou a vida. 


Amigos do Bié 


Não dava para acreditar. A dor coletiva foi enorme. Um marido dedicado. Um pai dos mais amorosos. Não era possível que o Gabriel não estivesse mais aqui. A Denise estava sozinha com as três crianças pequenas em Cruzília. Não era possível que teriam de seguir nesse mundo sem aquela figura paterna tão forte.


Não tinha jeito mais. A morte vem e interrompe tudo e nos lembra que os mistérios da partida são designados por ELE. Aquele homem gente fina que tinha o dom de deixar a realidade um pouco mais ficcional se transforma rapidamente em uma ideia, uma saudade, um sentimento. O  que acontece logo após a sua partida expõe claramente a dificuldade de separar o homem da lenda. O leilão em prol da família do Gabriel foi uma ação movida pela legião de amigos que ele fez em vida. Sobre a frase do médium Chico Xavier, quando ele diz: “o bem que você pratica em algum lugar é seu advogado por toda parte”, exemplifica porque a família de Gabriel pôde colher tudo que ele plantou durante a vida em poucos dias. 


Para ajudar na adequação de uma nova realidade financeira, Denise se viu amparada pelas tantas pessoas que de repente iam aparecendo, de todos os lugares, querendo ajudar; a campainha tocava o tempo inteiro, a comoção pela perda iminente foi avassaladora. Começaram a chegar caminhões de gado de toda parte, de perto e de longe, doações expressivas, de parentes, amigos e negociantes. As pessoas que não podiam doar para o leilão, também queriam ajudar de alguma forma. E foi quando a família começou a saber das boas ações de Gabriel e do tamanho imensurável da gratidão que as pessoas estavam sentindo por ele e do tamanho imensurável também da dor, de terem o perdido tão violentamente. No dia do leilão, os lotes foram arrematados por preços além do mercado e ainda houve quem arrematasse e devolvesse à Serra. Eram pessoas próximas à Bié, que tiveram de alguma maneira suas vidas tocadas por ele. 


Denise conseguiu comprar uma casa na cidade, carro, administrar a fazenda e manter as terras da Serra para os filhos. O leilão significou para a família um símbolo de gratidão eterna pela pronta homenagem póstuma que dedicou à memória de José Gabriel. Mais que títulos e notas, os valores do Leilão foram sobre riquezas que dinheiro nenhum compra: caráter e lealdade. Valores verdadeiros que todos fizeram questão de afirmar, nessa corrente impressionante de solidariedade. Era como se ele falasse lá de cima: “Filhos, confiem em mim”.


A partida precoce de Bié deixou um vazio na vida daqueles que o amaram e que o cercaram por 38 anos. Ficou um lamento sertanejo, a dificuldade iminente de falar dele sem marejar os olhos, sem o nó na garganta e o aperto de lembrar de tantos momentos ao lado daquele gigante, em estatura, intensidade e coração. A sua falta também motivou o desejo de seus amigos celebrarem seu legado. É por isso que muitos deles se reúnem atualmente na cavalgada “Amigos do Bié”, para celebrar sua vida, fazendo o que tanto ele gostava. Ser uma boa pessoa foi certamente sua grande marca. Bié foi verdadeiramente, um gigante, em vida e morte. Das palavras ainda não ditas, dos sentimentos ainda não processados, da grande lacuna que se fez com sua ausência, seguir seus passos têm sido norte na vida de seus filhos. Nas veredas da vida, o enredo às vezes segue rumos inesperados, mas as raízes deixadas por José Gabriel, seguem-se firmes e certamente, inexoráveis pelo tempo!...



Nota 1: Carta teria sido sua melhor cadela. “Fica aqui gravado a saudade de talvez a melhor cadela do mundo”. 







CARTA


24/03/1986 - Morreu hoje a célebre Carta, talvez a melhor cachorra que já cacei até hoje. Tive vontade de largar tudo, não mexer mais com caçada. Mas, como diz o ditado: “por causa de um soldado, a guerra não acaba.” Se bem que o que morreu não foi um soldado, foi o General do Primeiro Escalão. Carta foi a cadela que mais prazer me deu, só caçava veado, não latia com outro bicho, onde tivesse um veado a Carta ia lá botar ele pra correr. Esperta, de muito bom faro, no tempo das queimadas só ela que levava. Sinto a morte da Carta como a morte de um filho meu. Fica aqui gravado a saudade de talvez a melhor cadela do mundo.








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